
Cães de diferentes raças se destacam dando suporte ao ser humano em diversos campos, tanto na polícia auxiliando em resgates, detecção de entorpecentes, entre outras funções, como na assistência a pessoas com dificuldades diversas. E o uso de cães de raça tem demonstrado tanta eficiência que novos projetos e trabalhos não param de surgir pelo mundo afora.
No Brasil, há projetos pioneiros que têm utilizado cães para a detecção de fauna silvestre. O Projeto Faro para Conservação (@faroparaconservacao), idealizado pelo biólogo e adestrador Daniel Ferraz, é o primeiro a utilizar o faro canino no rastreamento de primatas em extinção. “O projeto foi criado em 2021 com a chegada da cadela Nash, da raça Labrador, ainda filhote, e ele integra a gama de iniciativas geridas pela ONG Rede Eco-Diversa (@eco.diversa) para Conservação da Biodiversidade”, acrescenta Daniel, que desde sua infância tem grande paixão por cães, em especial pelo Labrador. “A raça Labrador sempre fez parte da minha vida, e trabalhar com cães era um sonho que almejei realizar. Meu foco tem sido a conservação do maior primata das Américas, o muriqui-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), espécie criticamente ameaçada de extinção no Parque Nacional do Caparaó, localizado entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Há uma década, coordeno, em parceria com as biólogas Mariane Kaizer e Aryanne Clyvia, o Projeto Muriquis do Caparaó (@savethemuriqui)”, explica Daniel. Já o Projeto Faro para Conservação tem o objetivo principal de promover ações de pesquisa voltadas para a conservação de espécies raras e/ou ameaçadas de extinção, utilizando cães farejadores como ferramenta de trabalho. “Somos a única equipe atualmente trabalhando com detecção de primatas neotropicais no Brasil e, provavelmente, na América Latina. O Brasil é um dos países mais ricos em biodiversidade do planeta, abrigando a maior variedade de espécies de primatas em todo o mundo, com 140 táxons (espécie e subespécie). Muitas dessas espécies são raras, crípticas e/ou ameaçadas de extinção (pelo menos 40%)”, acrescenta.
Além do muriqui-do-norte, o Projeto Faro para Conservação também visa monitorar outras três espécies de primatas endêmicas da Mata Atlântica brasileira que estão ameaçadas de extinção: o bugio (Alouatta guariba clamitans), o sagui-da-serra-escuro e o sagui-da-serra (Callithrix aurita e Callithrix flaviceps – que está na lista dos 25 primatas mais ameaçados do mundo), incluindo também híbridos entre essas duas espécies de sagui. “No entanto, até o presente momento, estamos focando apenas no monitoramento dos saguis em uma área de intergradação natural (quando duas subespécies distintas ocorrem em áreas onde suas populações têm as características de ambas) entre as espécies, no Vale do rio Carangola, na divisa de Minas Gerais e Rio de Janeiro. As demais espécies poderão entrar em uma segunda etapa”, afirma Daniel.


A Labrador Nash (no alto), do Projeto Faro para Conservação; acima, a Pointer Betty, do Projeto Felinos da Jureia-Itatins:
ambas são treinadas para detecção de espécies silvestres
Outro grande objetivo do Projeto Faro para Conservação, é o de buscar popularizar o uso de cães nas investigações sobre a biodiversidade brasileira através da biodetecção – o que já vem acontecendo, a exemplo do Projeto Felinos da Jureia-Itatins, do Instituto Bioventura (bioventura.org.br), projeto de pesquisa científica e conservação de felinos e outros mamíferos de médio e grande porte coordenado pelos pesquisadores Lourdes Alessandra Ventura Seabra (conhecida como Lu Ventura), que é médica-veterinária, bióloga e presidente do Instituto Bioventura, e Ed Ventura, biólogo e coordenador de projetos do Instituto. Recentemente, eles adquiriram um cão da raça Pointer da Holanda, em parceria com o Instituto Scent Imprint Conservation Dogs (S.I.C.D.). “A nossa cadela Betty é treinada para farejar fezes de onça-pintada, onça-parda, jaguatirica, gato-do-mato e cachorro-vinagre, e pode ser treinada para outras espécies. Essas fezes são enviadas ao laboratório e seu DNA analisado, sendo uma importante ferramenta para estudos populacionais, uso do habitat e avaliações de fluxo gênico, auxiliando o monitoramento e a criação de políticas de conservação de predadores da Mata Atlântica em Peruibe e Iguape”, apontam os pesquisadores, cujo objetivo é constatar a presença desses predadores em regiões de difícil acesso como a Mata Atlântica, onde a floresta é densa, montanhosa, constantemente úmida e, por isso, também pouco estudada. “O caso da onça-pintada é um pouco diferente, pois seu último registro oficial na Jureia-Itatins foi em 1988, quando foi morta por caçadores. Após esse incidente, tivemos apenas relatos de avistamentos não precisos e outros mais consistentes de moradores locais, quando selecionamos alguns para investigação”, acrescentam Ed e Lu Ventura.
O Projeto Felinos da Jureia-Itatins nasceu há pouco mais de dois anos e conta com uma equipe de voluntários de moradores do entorno da área de conservação, além do monitor ambiental e caiçara nativo Dico Ribeiro e sua esposa Rosana Prado, que conhecem muito bem a região da Jureia-Itatins desde a infância. “O Projeto também conta com outros biólogos, médicos-veterinários e pesquisadores colaboradores preocupados com a conservação dos felinos na Mata Atlântica”, comentam os biólogos Ed e Lu, que sempre trabalharam com natureza, fauna e conservação.

“A raça Labrador é famosa pelo seu faro em modo venteio, uma técnica que lhe permite capturar partículas de odores presentes no ar”,
aponta o biólogo e adestrador Daniel Ferraz

“A nossa cadela Betty é treinada para farejar fezes de onça-pintada, onça-parda, jaguatirica, gato-do-mato e cachorro-vinagre”,
dizem Lu e Ed Ventura, do Projeto Felinos da Jureia-Itatins

Betty, que veio da Holanda, está sendo introduzida e se ambientando aos poucos nesse novo ambiente de floresta litorânea,
que é montanhosa e constantemente úmida
TREINAMENTO DOS CÃES
A cadelinha Betty foi treinada na Holanda e doada para o Instituto Ventura pela ONG S.I.C.D, graças ao seu fundador, Wesley Visscher. “Atualmente estamos ambientando e treinando Betty, introduzindo-a aos poucos nesse novo ambiente de floresta litorânea. Tivemos também um treinamento intensivo de 12 dias com a treinadora Michelle Willems, enviada para o Brasil e continuamos com acompanhamento e orientações a distância pelos profissionais da ONG holandesa”, acrescentam Lu e Ed.
Quem participa diretamente dos treinamentos e das atividades de campo da Nash, do Projeto Faro para Conservação, é Daniel. “Sou responsável por todo o treinamento e a manutenção da cadela Nash. Especialmente nas atividades de campo, estou sempre acompanhado de outros pesquisadores e/ou médicos-veterinários. Desde o início, o Projeto contou com o auxílio de diversos treinadores de cães, em especial Marcos Paulo Cattoni (CT Vale dos Cães) e Jorge Pereira (da Unidade K9), que conduziram meus primeiros passos no treinamento prático e teórico sobre cães de detecção”, complementa. Aliás, Daniel utiliza o Método GEO (Gerenciamento Emocional Olfativo), desenvolvido e adaptado pelo treinador de cães Jorge Pereira. “Esse método se caracteriza por um processo orgânico, com fases bem definidas, que foca principalmente no aspecto emocional do cão. De maneira simplificada, inicialmente, treinamos a forma de indicação, que pode ser passiva (como ‘sentar’ ou ‘deitar’ em frente ao alvo) ou ativa (como latir). Somente após essa etapa, introduzimos a substância alvo que o cão deve detectar, permitindo que o cachorro assimile os odores necessários para as suas buscas. Ao identificar o odor para o qual foi treinado, o cão é recompensado com um brinquedo ou alimento (método de reforço positivo), além de receber uma dose intensa de emoção de seu condutor. O treinamento de um cão de função é um processo contínuo e dinâmico que exige dedicação, paciência e conhecimento por parte dos treinadores”, explica.
Daniel compartilha que está dando início a uma parceria com o Centro de Treinamento Casarão dos Cães (@casaraodoscaes), que facilitará o avanço nos treinamentos e estudos. “Com essa colaboração, teremos a oportunidade de desenvolver novos cursos voltados para a formação de condutores e cães especializados na detecção de fauna. A continuidade da pesquisa, tanto em ambientes laboratoriais quanto em campo, implica em um custo financeiro contínuo. A aquisição de materiais e auxiliares de treinamento, bem como a compra de produtos para conservação e armazenamento das amostras de odores, representam desafios permanentes”, aponta o biólogo.



(De cima para baixo) Nash inicia a busca com Daniel; Nash em atividade de detecção; e Nash identificando o alvo com o “senta”
TRABALHO DE CAMPO
Quando estão em campo, Betty e Nash procuram na floresta por vestígios dos animais que detectam, mais especificamente por suas fezes. “Ao fazer a detecção das fezes, temos a certeza de que a espécie que procuramos está presente naquela floresta. Através das amostras de fezes coletadas, é possível realizar uma série de estudos, como coleta de material genético (DNA ambiental), estimativas de densidade populacional, presença/ausência e de saúde, como dieta e parasitológico, dentre vários outros. Com essas informações, podemos entender melhora ecologia e a distribuição de uma espécie, planejar estratégias de manejo, criar corredores ecológicos e políticas de conservação de forma apropriada e, assim, contribuir para a preservação de populações saudáveis na natureza”, descreve Daniel. “Estamos criando um banco de dados das amostras coletadas para futuras análises, que poderão integrar pesquisas nas mais diversas áreas, mas o objetivo inicial é a análise da matriz de ocorrência na zona de intergradação entre essas espécies de saguis, dentro de seus limites de ocorrência, bem como avaliar a variabilidade genética e a ocorrência de híbridos dentro das populações nativas. Esperamos que nossos esforços também sirvam de exemplo para outros profissionais, como biólogos e cinotécnicos, e que nossos protocolos e experiências possam ser úteis para novos projetos de pesquisa nesta área”, acrescenta Daniel.
ESCOLHA DOS CÃES
No Projeto Faro para Conservação, por ser uma retriever, Nash tem a habilidade de buscar a caça abatida pelo Homem, utilizando seu excelente faro para localizá-la. “A raça Labrador é famosa pelo seu faro em modo venteio, uma técnica que lhe permite capturar partículas de odores presentes no ar”, continua Daniel, cuja cadela foi selecionada e treinada nos primeiros três meses em parceria com Gisela Alvim, proprietária do canil Just Retriever Labrador. Para a seleção, foram observadas características como temperamento, motivação para aprender, excelente disposição para interagir com humanos e, principalmente, fortes indícios de impulsos de caça e habilidades olfativas nas atividades do dia a dia. “Essas características evidenciam qualidades fundamentais que demonstram a capacidade de treinamento e a aptidão para a função de detecção”, aponta.
Ed Ventura destaca que, embora muitas raças possam desempenhar tal função, Betty é especial por sua motivação para trabalhar. “Nem todo cão pode se tornar um cão de trabalho. Mas a raça Pointer é farejadora por natureza, devido ao processo de cruzamentos ao longo dos anos”, enfatiza.
INCENTIVO E APOIO
“O Projeto Faro para Conservação é um trabalho que foi construído por várias mãos, especialmente de profissionais cinotécnicos que reconhecem o potencial dos cães de cumprir com a missão de auxiliar pesquisadores na conservação da biodiversidade brasileira. Desde o início, tivemos a participação fundamental de treinadores de cães de detecção que contribuíram para minha formação e da cadela Nash. Além dos já citados, houve também o Diego Fleitux (Clã Dog House), J. Luiz, Raian Lopez e toda a equipe do Projeto K9. Mais recentemente, o Projeto Faro para Conservação firmou uma parceria com os cinotécnicos Tiago Cabral Rodrigues e Luís Galvão Peres, nos integrando ao Projeto K9. Também possuímos alguns parceiros e patrocinadores, como a ToPet, que fornece materiais para treinamento, cuidados em saúde e bem-estar; União Dog, que disponibiliza materiais para treinamento e condução; a Special Dog Company, que contribui com o fornecimento de alimento para Nash e apoio da Big Pets”, finaliza Daniel.
O Projeto Felinos da Jureia-Itatins conta com a parceria de profissionais de diversas áreas que compõem o Instituto Bioventura, pessoas da região que se importam com a conservação da Jureia-Itatins e que os apoiam seguindo suas redes sociais, como empresários e comerciantes locais que fornecem suporte para as expedições por dias em meio à floresta. “Porém, no início é tudo mais difícil, e ainda buscamos patrocinadores, como empresas de ração e produtos veterinários para a Betty”, finalizam Lu e Ed.
Por Samia Malas
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