Uso do óleo de cannabis na veterinária

Foto: Photoboyko/iStockphoto.com
Assim como na Medicina Humana, o uso medicinal dessa planta também traz muitos benefícios aos pets

Há muito debate ainda e um longo caminho a ser percorrido para que se consiga um amplo uso do óleo de cannabis medicinal, extraído da cannabis sativa, planta conhecida por seus efeitos terapêuticos há mais de 5 mil anos por civilizações antigas como os chineses. “Os primeiros registros do uso medicinal de cannabis na medicina veterinária são do século XVI, quando um médico francês a utilizava para aliviar cólica em equinos”, afirma Bruno Perozzo, anestesiologista veterinário qualificado em Terapêutica e Fisiologia do Sistema Endocanabinoide pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. cannabis na veterinária

Segundo a veterinária Camila Ziello, especializada em Dermatologia e medicina cannabinoide (cannabis medicinal) da VetPiú clínica veterinária, de São Paulo, no Brasil há grandes veterinários pesquisadores da área. “Porém, há poucos anos que os pets começaram a se beneficiar com o tratamento de fato, mesmo que já tenhamos comprovação científica e trabalhos publicados sobre a eficácia dele em pets e a grande transformação e qualidade de vida que o óleo traz para os animais”, diz. “No Brasil, no meu conhecimento, o primeiro médico-veterinário a trabalhar com uso medicinal da cannabis foi o Dr. Fabio Mercante de San Juan, carinhosamente chamado de Dr. Pet Cannabis, que utilizava em seu cão para controle de dor crônica, em meados de 2009”, completa Bruno.

Casos de sucesso

 As patologias que mais apresentam bons resultados com o tratamento à base de cannabis segundo os veterinários entrevistados são: dor crônica e aguda, alguns cânceres, distúrbios alimentares, epilepsia, disfunções renais, diabetes, dermatopatias, quadros gastrointestinais, doenças hepáticas, artrite, artrose, hérnia de disco, displasia, doenças degenerativas, ansiedade, problemas comportamentais (depressão, estresse, agressividade e medo), quadros inflamatórios, recuperação ortopédica e pós-cirúrgico. “São inúmeros quadros em que o uso medicinal da cannabis pode nos ajudar como agente primário ou complementar numa terapia multimodal”, aponta Bruno, ao ressaltar que o benefício do uso do óleo em pets é enorme. “Por exemplo, controla convulsões melhor que o Fenobarbital, sem os efeitos colaterais que o alopático ocasiona. Traz qualidade de vida, é bem aceito pelos animais e mais fácil de administrar que os fármacos alopáticos”, lista. cannabis na veterinária

Barbara Arranz, biomédica, especialista no uso de cannabis medicinal e CEO de uma linha de produtos à base de cannabis, ressalta que a epilepsia é a doença neurológica mais comum entre cães, atingindo cerca de 5% dos animais dessa espécie. “Estima-se que de 20 a 30% dos cachorros com o problema não respondem bem aos tratamentos disponíveis. Além disso, medicamentos veterinários hoje utilizados nessas circunstâncias podem gerar efeitos colaterais que deixam os bichos mais fragilizados”, aponta a biomédica. Ainda segundo ela, há um estudo em andamento nos Estados Unidos, com previsão de ser concluído ainda em 2021, que procura mostrar como a cannabis ajuda no enfrentamento da doença. “A pesquisa, denominada ‘Eficácia do canabidiol para o tratamento da epilepsia canina’, quer encontrar um medicamento à base de cannabis que funcione na grande maioria dos casos e não resulte em reações adversas significativas. Quando concluído, esse será o primeiro grande experimento sobre o tema, trazendo respostas mais claras e científicas sobre o poder da maconha medicinal nos animais”, conta.

Como funciona?

Bruno explica que o mecanismo de ação do óleo de cannabis em cães e gatos é similar ao mecanismo de ação em humanos. “Todos os vertebrados possuem um sistema denominado Sistema Endocanabinoide, responsável pela homeostase e pelo equilíbrio dos sistemas do organismo. Olha que interessante: agora, neste exato momento, todos nós – e os pets – estamos produzindo ‘maconhazinhas’ a partir desse sistema! De forma bem básica, produzimos os chamados endocanabinoides, e os mais conhecidos são a Anandamida, análoga ao THC, e o 2AG, análogo ao CBD. O THC e o CBD são denominados fitocanabinoides, produzidos a partir de plantas do gênero Cannabis spp. Entendemos que uma patologia ocorre pelo desequilíbrio do Sistema Endocanabinoide gerando um déficit ou uma diminuição da produção dos endocanabinoides que podem ser suplementados pelos fitocanabinoides, extraídos da planta. É um mecanismo de chave-fechadura, onde os endo e fitocanabinoides se conectam em receptores nas células e desempenham suas funções”, explica.

Gata Denise e sua tutora, Simone Gatto, que conseguiu controlar as oito convulsões diárias da gatinha tetraplégica com o óleo de cannabis, e agora controla as dores de Kerry, sua cadela com tumor cerebral, também com cannabis Arquivo pessoal Simone Gatto

História da gatinha Denise
Denise é uma gata tetraplégica de 15 anos que há 4 foi adotada por Simone Gatto, de São Paulo. “Quando a achamos, ela estava péssima. Viveu anos em completo abandono na casa de uma acumuladora e tem diversas patologias: artrite, artrose, hérnia de disco, bico de papagaio, polirradiculite e hiperestesia à dor em função da coluna quebrada em oito lugares, o que fazia com que ela tivesse cerca de oito convulsões ao dia”, relata a tutora, que lançou mão de diferentes terapias para tratar da gatinha, como fisioterapia, acupuntura, quiropraxia, ozoneoterapia, entre outros. “Até cirurgias espirituais fizemos com Denise, e tudo foi muito eficaz e ajudou muito na sua recuperação. Porém, as convulsões não cessavam, nem mesmo com os anticonvulsionantes”, relata Simone, que iniciou o tratamento da gatinha com óleo de cannabis em agosto de 2019, feito no departamento paliativo da dor da Universidade de São Paulo. “Em três dias de uso do óleo, as convulsões quase zeraram. Foi além da minha expectativa, pois até a sensibilidade à dor melhorou. Hoje eu posso fazer carinho na minha gata sem que ela convulsione”, compartilha Simone, que vem sendo bastante militante na defesa do uso do óleo de forma mais ampla. Ela tem, inclusive, um grupo no WhatsApp com tutores que fazem uso dessa terapia em seus pets. “Vivemos apreensivos, com medo de que o medicamento seja proibido e que não consigamos mais comprá-lo para nossos animais. Como aceitar que, depois de tanto sucesso e com tantas comprovações da eficácia do medicamento, a Anvisa junto com o MAPA proíbam a venda do medicamento?”, indaga Simone, que criou uma petição on-line na charge.org exigindo o direito de acesso ao óleo. “Pretendo também, em breve, entrar na justiça e espero que algum advogado se interesse pelo caso e nos dê suporte”, comenta a tutora, que agora está iniciando o mesmo tratamento com sua cadela, Kerry, que sofre de um tumor cerebral. “Confesso que estava sem esperança de tratar ela com eficácia, mas com a cannabis o resultado foi imediato. Agora ela consegue dormir e parou de se debater tanto”, finaliza.

Tratamento

O uso do óleo sempre é feito primeiramente com doses baixas para maior segurança do pet. “É necessário um acompanhamento bem de perto, diário, por um período mínimo de 30 dias. O objetivo do tratamento com o óleo de cannabis é tirar todas as medicações alopáticas que o pet tomava e manter apenas ele. Assim, conseguimos dar mais qualidade de vida ao animal”, revela Camila, que diz serem raros os casos de rejeição ao tratamento. “É importante ressaltar que o óleo de cannabis é um produto natural que não gera vício no animal”, diz Camila. “É muito importante que tanto o veterinário treinado quanto o dono do animal prestem atenção no comportamento do pet, mesmo nessa fase de introdução do óleo. Assim como acontece com seres humanos, a dosagem de cannabis pode ser aumentada ou diminuída, a depender das reações do organismo do animal”, enfatiza Barbara. 

Já Bruno ressalta que, como cães possuem um número maior de receptores CB1, é preciso maior cuidado ao trabalhar com extratos ricos em THC. “Podemos ter reações negativas com qualquer paciente. Contudo, um tratamento pautado em exames clínicos e laboratoriais nos permite trabalhar com segurança”, afirma. “Uma planta que tem alto CBD terá mais efeitos corporais, e uma planta com alto THC terá um efeito mais psicoativo. Na veterinária, geralmente é mais usado o óleo que contém partes iguais de CBD e THC ou com alto THC”, acrescenta Camila.

“A cannabis é uma planta que tem baixa toxicidade. Reações adversas em animais são raras e, geralmente, estão associadas a casos de superdosagem ou ingestão da versão in natura”, alerta Barbara.

Muito estudo

Segundo Bruno, no Brasil, somente a Universidade Federal de Santa Catarina, campus Curitibanos, dispõe de aulas sobre o sistema endocanabinoide na medicina veterinária. “Ministro as aulas de interação medicamentosa, toxicologia e extração no curso de formação de médicos-veterinários prescritores pela Associação PetCannabis, que conta com mais de 800 médicos-veterinários formados. Desde 2018, passei a atender animais com foco em medicina canabinoide, mas estudo o tema desde 2005, a partir dos seminários do CEBRID/Unifesp, com o professor Dr. Elisaldo Carlini. Nessa época, só tinha acesso a conteúdo voltado à medicina humana”, acrescenta Bruno, que também tem curso de extrações pelo Colégio Cannabico LATAM e Cannativa, ambos do México, e em produção de cannabis, pela Universidade Nacional de Bogotá, na Colômbia.

Já Camila, que também participa de grupos de estudo com outros veterinários sobre o tema, tem trabalhado em um projeto pioneiro que visa usar o óleo na prevenção de doenças, através de parceria com uma marca de alimentos naturais orgânicos. “Nossos estudos estão avançados, logo vem coisa boa por aí”, antecipa Camila.  

Segundo Bruno, o valor do tratamento que usa o óleo de cannabis como medicação varia de acordo com a concentração do óleo, que muda conforme o tamanho do paciente e a patologia pela qual é acometido. “Podemos determinar uma faixa de valor entre 200 a 500 reais por frasco. Os frascos geralmente têm entre 20 e 30 ml e, dependendo da posologia, duram, em média,  de 40 a 60 dias”, estima o médico-veterinário.

Gata Harley, de 4 anos, e Bull Terrier Miniatura Wandinha, de 13 anos: ambas conquistaram qualidade de vida com o uso do óleo de cannabis – Fotos: Arquivo pessoal

Gata Harley e a minibull Wandinha
A veterinária Camila Ziello, da VetPiú clínica veterinária de São Paulo, conta dois casos de sucesso para a revista Cães & Cia. Um deles é o da gatinha Harley, de 4 anos, Sem Raça Definida, que aos 2 anos começou a apresentar quadros de convulsão. “Após exames para descarte de outras doenças, foi fechado o diagnóstico de epilepsia idiopática. Harley precisava tomar diariamente o medicamento Gardenal, muito utilizado na medicina veterinária e humana no combate a convulsões, duas vezes ao dia na dose máxima, e mesmo assim uma vez ao mês ainda tinha crises”, diz Camila, que, ao iniciar o tratamento com o óleo de cannabis na paciente, foi reduzindo a dose de Gardenal progressivamente, até que ele fosse retirado. “Hoje ela se mantém apenas com as gotinhas do óleo”, comemora a veterinária.   
Já a minibull Wandinha, uma idosa de 13 anos, não conseguia se locomover direito de tantas dores que sentia. “Ela estava sendo medicada com Gabapentina diariamente e às vezes com Tramal, em momentos de muita dor. Iniciamos com o óleo e, nos primeiros três dias de tratamento, Wandinha já começou a andar novamente e até a interagir com os outros cães. Hoje ela está apenas com o óleo também, sem nenhum medicamento alopático e livre de dor. É por isso que falamos que o óleo é a gota da vida”, finaliza Camila. 

Uso controlado

No Brasil, somente associações autorizadas judicialmente e regulamentadas para o cultivo da planta e a extração do óleo podem fabricar o medicamento de forma artesanal e vender mediante apresentação de receita do médico-veterinário. “O óleo é a principal forma de ministrar o canabidiol, mas é possível encontrar também a substância na forma de spray, pomada, shampoo e sabonete. É de extrema importância o tratamento ser prescrito por um médico-veterinário treinado e habilitado para medicina cannabinoide”, destaca Camila. 

Bruno concorda que o uso pela via oral em veículo oleoso é o mais comum. “Nos Estados Unidos, existe a apresentação em patch transdérmico, mas com este não tenho experiência”, aponta. Ainda segundo ele, no Brasil, não há legislação específica para a utilização do tratamento na medicina veterinária. “Assim, nos pautamos na legislação humana, tentando seguir a mesma linha, enquanto Canadá, Estados Unidos, México, Colômbia e outros países encaram o tema com seriedade, regulamentando o mercado, coletando impostos e colhendo os frutos de belos resultados do uso desse tratamento”, ressalta, ao citar o Projeto de Lei (PL) 399/15, que tramita na Câmara dos Deputados, como uma esperança na regulamentação do mercado. O objetivo desse PL é viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta Cannabis sativa em sua formulação. “Nós temos o dever moral de quebrar os preconceitos acerca da cannabis e nos beneficiar de tudo que ela proporciona. Ela é segura, eficaz e com efeitos colaterais mínimos. Parafraseando o neurocientista Sidarta Ribeiro, ‘a maconha está para a medicina do século XXI como os antibióticos estiveram para a medicina do século XX’”, finaliza Bruno. 


Por: Samia Malas

Agradecimentos:

BRUNO PEROZZO
Anestesiologista veterinário qualificado em Terapêutica e Fisiologia do Sistema Endocanabinoide pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro

BARBARA ARRANZ
Biomédica e especialista no uso de cannabis medicinal

CAMILA ZIELLO
Especializada em Dermatologia, criocirurgia e medicina cannabinoide (cannabis medicinal) da VetPiú clínica veterinária, de São Paulo

 


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