Pela criação comercial de aves brasileiras

Busca por animais de companhia: traço comum às mais variadas culturas

Por Luiz Fábio Silveira

Robin Harmon / Flickr

A discussão é antiga. Frequentemente envereda por caminhos que não levam em conta questões técnicas, guiada por ideologias imutáveis (“sou contra, e ponto final”) ou por argumentos emocionais (“passarinho em gaiola não canta: lamenta”), que não encontram qualquer respaldo na realidade e nem nos milhares de estudos já́ realizados.

É inegável e indiscutível o prejuízo gigantesco causado à biodiversidade pelo tráfico de animais silvestres, atividade perniciosa responsável por forte redução das populações naturais. O mais impressionante é que o tráfico de aves continua com rotas conhecidas e bem mapeadas, sem se notar diminuição da atividade e nem a prisão de traficantes conhecidos e reincidentes. Até as pedras sabem que, a partir de meados de agosto e setembro, centenas, talvez milhares de filhotes de papagaio indefesos chegarão, principalmente, aos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Esses filhotes não vêm voando. Retirados de seus ninhos continuamente há décadas, são levadas a qualquer feira, maltratados e amontoados em caixas, com alimentação precária, calor e estresse, e vendidas a preço baixo. O mais espantoso é existirem ainda Papagaios na Natureza.

TER AVES: INTERESSE UNIVERSAL

A criação ou manutenção de animais em cativeiro é um dos poucos traços que podemos considerar “universais”, encontrados na maioria das culturas humanas. Nas mais variadas delas, tanto antigas quanto modernas, existem numerosos exemplos de manutenção e criação de animais silvestres. Entre os indígenas brasileiros, por exemplo, é muito comum a manutenção “utilitarista”. Filhotes de Araras e Papagaios retirados dos ninhos se tornam companheiros muito estimados, deixados soltos nas aldeias. Mas, ao mesmo tempo, são fonte perene de penas, as quais, depois de arrancadas, vão enfeitar brincos, cocares e outros adornos. Os indígenas cuidam também com extremo cuidado dos filhotes de Macacos e Porcos-do-Mato, cujos adultos foram mortos para servir de alimento. Esses filhotes, criados com carinho, quando crescem também são comidos.

O fato é que possuir e manter animais em cativeiro faz muito bem aos seres humanos, como comprovam estudos realizados por psicólogos. Esse é o primeiro ponto relevante: a importância dos animais de companhia em nossa vida. Seja um peixe Betta em aquário pequeno, seja uma tartaruga, um papagaio ou um cão ou gato, todos contribuem diretamente para a estabilidade emocional das pessoas, para praticar responsabilidade e até para a educação das crianças.

Em milhares de anos de evolução como espécie levamos conosco esse traço, que é um dos motivos da demanda por animais. Mesmo sem pensar nesse aspecto, institivamente as pessoas procuram por animais de companhia. E, nesse ponto, temos outra peculiaridade humana: a preferência de cada um. Assim como existe quem goste mais de cães e gatos, há quem opte por aves canoras ou por aquelas mais interativas, como os Papagaios. Esses interesses, naturalmente, criam demanda

 
CAPTURA E TRÁFICO

Como satisfazer a demanda? Em centros mais próximos dos habitats naturais, em geral nas cidades menores e menos urbanizadas, o interessado que deseja animal silvestre vai ao campo e o captura. Simples assim. E nas cidades maiores? Até pouco tempo atrás, o traficante era a única opção, o que, como já foi ressaltado, levou populações inteiras de animais a alto risco de extinção, fato que acontece no mundo inteiro, não só no Brasil.

A alternativa lógica para combater o tráfico deveria ser calcada em dois eixos: repressão ao tráfico e estímulo à criação em cativeiro. Com relação ao tráfico, enquanto a atividade não for encarada pelos legisladores como crime grave, cometido não apenas contra os animais, mas também contra a sociedade (visto que o meio-ambiente equilibrado é direito constitucional), de pouco adiantam as apreensões dos animais. Destinados aos centros de triagem ou ONGs, muitos deles morrem, apesar do enorme esforço para salvá-los.

ALTERNATIVA INTERNACIONAL

A criação em cativeiro com finalidade comercial é mundialmente reconhecida por diversos tratados internacionais relacionados à conservação da Natureza, dos quais o Brasil é signatário. Além disso, a própria legislação brasileira apoia essa atividade. Se a criação comercial em cativeiro pode oferecer uma alternativa legal ao tráfico, fornecendo animais saudáveis, nascidos e adaptados ao cativeiro, marcados com anilhas ou microchips, gerando empregos e renda, por que tanta discussão?

NACIONAIS X ESTRANGEIROS

Há uma corrente no Brasil que defende que “silvestre não é pet”, referindo-se apenas aos animais brasileiros, sem se preocupar com a criação e comercialização dos animais silvestres vindos das demais partes do mundo e que são mantidos em  cativeiro com a mesma finalidade. A postura é muito peculiar, na medida em que há uma questionável “proteção” dos animais nacionais, enquanto, curiosamente, esses “nossos” animais são criados com sucesso em vários países.

Mas, proteção contra o que, exatamente? E por que os animais silvestres extrabrasileiros podem ser criados? Levando essa pergunta a um extremo, apenas para pensarmos um pouco mais, uma Arara-Vermelha peruana seria “menos” Arara-Vermelha só porque foi reproduzida em cativeiro no Peru? E, criada no Peru, poderia ser vendida no Brasil? E, se o animal silvestre ainda existir no ambiente natural e só for objeto de retirada na Natureza, o que faríamos, por exemplo, com os peixes ornamentais comercializados em lojas de todo o País? Ou os peixes são “menos” silvestres que as Araras?

PROBLEMAS DA DISTRIBUIÇÃO

Outra corrente defende a existência de uma lista do que pode ser criado comercialmente. Essa postura é mais interessante e marca de forma inequívoca o reconhecimento dos órgãos ambientais do governo sobre a importância da criação comercial para suprir a demanda por animais em cativeiro. Entretanto, as primeiras tentativas de se produzir tal lista resultaram em um número muito reduzido de espécies. Uma lista de animais passíveis de serem criados em cativeiro é sem dúvidas um avanço. Mas, se for muito restritiva, trará embutidos problemas de longo prazo que poderão impactar diretamente os programas de conservação, por exemplo.

Um dos principais problemas na restrição da criação comercial de muitas espécies de aves (pode-se citar os Flamingos, os Mutuns, os Inhambus, entre tantas outras) é que, sem planteis para reproduzir e manter, vamos perder, lenta e gradualmente, toda a vasta experiência já acumulada na criação dessas aves.

Alguém pode argumentar sobre a possibilidade de os zoológicos ficarem com essa “expertise”. Mas é ainda mais
importante lembrar que os zoos mantêm as mais diversas espécies, sendo raríssimos os casos de zoos no Brasil que se especializam na criação de um determinado animal.
Consequência: nossos melhores especialistas nesses grupos serão inevitavelmente perdidos ao longo do tempo.

Logo, nos momentos em que for necessário recorrer à criação em cativeiro para salvar espécies ameaçadas não teremos biólogos, veterinários e zootecnistas qualificados para cuidar da nossa própria biodiversidade. O país líder mundial em diversidade biológica não possuirá profissionais qualificados para a gestão desse recurso em cativeiro.

Outro efeito negativo da redução na quantidade de espécies autorizadas para criação comercial é a perda da criação em grande escala, típica dos criadouros comerciais e não dos criadouros científicos e dos zoos. A grande escala gera enorme chance de alargar o conhecimento em várias áreas, como manejo da biodiversidade e aspectos anatômicos, físico, evolutivos e sanitários, proporcionando também emprego e geração de renda e de divisas com uma atividade legalmente constituída, além de melhorar o próprio bem-estar das aves. Além disso, a criação em escala produz “estoque” de animais que pode ser utilizado em programas de reintrodução e revigoramento genético das populações naturais, com retorno altamente positivo para a conservação.

DE OLHO NO BEM ESTAR

Por último, mas não em último: independentemente de o animal ser silvestre ou doméstico, brasileiro ou não, há que se pensar no aspecto mais importante e que não tem sido contemplado de forma adequada: o bem-estar das aves em cativeiro.

Seja uma Calopsita ou uma Arara-Azul, os animais bem mantidos, com boa nutrição e em condições adequadas, são psicologicamente saudáveis e isso tem de transcender qualquer discussão sobre quais espécies devem ser criadas comercialmente. Os critérios de bem-estar animal precisam necessariamente ser discutidos com clareza com a comunidade científica e em fóruns adequados, em debates tratados de maneira técnica e não ideológica e/ou emocional.